01 julho 2006

Sentado

Sentado, sozinho, esperando. Nesta tarde triste e fria, José de Lemos puxa de um pensativo e fuma-o, calmamente. Tem um encontro marcado. Um encontro com o tempo, aquele que ficou para trás, que o fez homem das artes, senhor da cultura, aquele que o lançou na glória, na vida mundana de uma cidade cosmopolita. Aquele que agora o abandonou à sua solitária vida.
Para Paris José foi, e de lá veio. Veio e trouxe recordações de anos de glamour, de câmara na mão, exibindo à sua película monocromática os olhares de gentes, e de olhares vivia sua glória de fotógrafo aclamado, jornalista eminente, portador de vivências e de imagens que grande azafama causou à ditadura da terra natal, pelo olhar nacional de quem está lá fora e vê o que não se vê pela cortina que envolve a tirania.
De Paris José veio. Veio e fotografou a infantil democracia que foi crescendo, e que de infantil passou a adulta, e que de adulta José a retratou. De câmara na mão, exibiu a sua película aos olhares do povo, no jornal, na revista, na vida das gentes que de fora tão pouco sabiam.
José tem um encontro com o tempo. E puxando do pensativo, vai pensando no que lhe perguntar. Para onde o levou? Que fez com a sua glória? Porque de novo o fez velho, e de velho o fez só? Somente o tempo escondido o sabe, e ele no fundo também, que nos seus tempos de ouro, uma perda a outra leva, e aos poucos também leva a vida.
Matilde era o seu nome. José não o sabia, mas num dia o descobriu, e desde esse dia a retratou na sua câmara, no acordar e no deitar, naquele dia em que juntos foram à costa e aí, na praia, saborearam o pôr-do-sol outoniço e a leve brisa do mar que lhes invadia a face e a alma, e se prolongou pelo feliz momento das suas vidas.
Mas triste foi o destino que tomou Matilde, que tomou a sua vida e a levou no tempo. Num dia em que um maldito inflamou seu corpo, seu interior, e rápido se espalhou, e rápido a consumiu. E a levou para longe, onde José não chegaria, onde a sua película não a retrataria. José ficou, ficou num mundo que lhe pareceu escurecer num simples fechar do diafragma.
E num copo escocês, numa garrafa amarga vai a glória de outros tempos, arrastando a alma e o corpo para longe da vida vivida, tentando esquecer uma perda que em outra se tornou. A película, essa, distorcida não voltou, e os anos de glória, de câmara na mão, de vida e vivências, de imagens retratadas, esqueceram-se no tempo, nesse tempo cujo encontro tem marcado.
Chegou a hora. São cinco e meia, hora marcada pelo tempo, hora marcada para a sessão do filme da sua vida, aquela sessão em que vai perguntar ao tempo o que o tempo fez à sua vida. Ao que o levou, ao que o trouxe de volta, e voltou a perder.
Entra devagar, vê a sala vazia. Apaga a beata do seu pensativo amigo e observa as cadeiras, procurando um lugar. Nelas encontra espaços em branco, películas perdidas que o tempo encarregou de esbranquiçar. Excepto numa, a que tem a sua velha e amiga câmara, aquela que o levou ao glamour da cidade cosmopolita, às imagens retratadas de um mundo desconhecido, à felicidade dos momentos vividos. Descobre aí o seu lugar e, sentado, espera o tempo chegar.

Junho 2006

2 comentários:

Jorge disse...

belo texto.

Anónimo disse...

parabens daniel é um belo texto. Estou agradavelmente surpreendido com o teu blogue.