03 fevereiro 2010

Sarajevo @ Viagens

O Homem do Mapa - S01E01

Era tarde e estávamos cansados. Terminava o fim-de-semana em Sarajevo e a hora do comboio nocturno com destino a Zagreb aproximava-se. Optamos por descansar um pouco na living room do agradável hostel onde pernoitámos, antes de nos dirigirmos para a estação de comboios.

Àquela hora de domingo não era esperado ninguém no hostel. A cidade de Sarajevo no Inverno é pouco dada a viajantes e muito menos a turistas. No entanto, a proprietária, uma senhora com cinquenta e muitos anos, recebeu-nos amavelmente e ofereceu-nos um chá. Aceitámos.

Depois de uns minutos de conversa, em que percebemos que a senhora era professora universitária de francês e árabe e até já tinha estado em Portugal em passeio, surge o seu filho que nos fez companhia na conversa.

Contava-nos que o hostel tinha seis meses de existência, que tinha sido durante doze anos e até à pouco tempo a residência oficial do embaixador da Suécia. Entretanto os suecos tinham-se mudado e a sua família resolveu criar um espaço para receber viajantes de todo o mundo. O hostel era composto por três apartamentos muito espaçosos que ocupavam dois pisos do edifício, onde era possível albergar 40 pessoas distribuídas por quartos individuais de duas pessoas ou quartos de oito pessoas em beliches. Nos restantes apartamentos do edifício viviam a sua mãe e o padrasto, o seu irmão e ele próprio.

Ao que percebi, eram de famílias relativamente abastadas de Sarajevo. Os dois irmãos também eram professores na faculdade local e o padrasto geria uma empresa de programação informática. O edifício onde estávamos e outros na cidade pertenciam à sua família há várias gerações, estando os rendimentos assegurados pelas rendas mensais que auferiam.

Num tom amável, comentei com o nosso interlocutor que a cidade era bastante agradável para passear e estava “incrivelmente arranjada”. Responde-me que houve um grande esforço para restaurar a cidade depois da guerra.

A guerra. Precisamente o que eu queria: a história narrada na primeira pessoa a partir do epicentro do conflito.

Foram duros os três anos e meio durante os quais a cidade de Sarajevo esteve cercada por militares Sérvios, conta-me. Cada vez que alguém saía à rua, poderia ser abatido por uma qualquer mira que habitualmente estaria nas colinas que circundam toda a cidade. Ele mesmo passou um ano inteiro sem sair da porta de sua casa, do qual três meses tinham sido passados escondido na cave.

Devido aos bombardeamentos, o edifício onde nos encontrávamos à conversa tinha sido severamente atingido: o telhado tinha desaparecido, todas as janelas quebradas, algumas paredes derrubadas. Durante esses três anos e meio não houve nem água nem electricidade na cidade, nem ele foi além das colinas. Os únicos que conseguiram ir ao exterior do cerco foram os militares e os membros do governo que, escavando um túnel desde o centro da cidade até ao aeroporto internacional controlado pela ONU, trouxeram mantimentos, munições e contactos internacionais. A sua mãe pertencia ao governo da época, conseguiu sair.

Pelo que entendi, a Bósnia é composta por diferentes etnias religiosas: muçulmanos (os bósnios), católicos (os croatas) e ortodoxos (os sérvios). Durante da época da República Socialista Federativa da Jugoslávia, toda a população viva “homogénea”, sem discriminação entre essas etnias: eram um só corpo. Aquando da morte do ditador Tito e seguidamente do desmembramento da União Soviética, os estados que compunham a República separaram-se, tendo o problema agravado na heterogénea Bósnia. Em nome do Grande Reino da Sérvia que comandou a região no passado, os Sérvios não poderiam deixar possibilidade para que os muçulmanos maioritários na capital Bósnia e oriundos do antigo Império Otomano tomassem o poder do país, e assim rebentou a guerra mais agressiva dos Balcãs.

“But this is my history, I’m muslim, I’m bosniak.”, advertindo-nos para a sua versão não ser isenta. Do outro lado da colina haverá outras versões, outras visões da guerra.

Na sequência dos acordos de paz, hoje a Bósnia e Herzegovina independente tem três presidentes, um para cada etnia religiosa, estando o país dividido em cantões conforme a maioria étnica. No entanto, independentemente da maioria religiosa numa determinada zona, qualquer posto de trabalho tem de ter um terço de cada etnia. Em consequência, a selecção de uma pessoa para um cargo depende fundamentalmente das necessidades da empresa em cumprir a regra dos terços, do que do mérito e competência de cada um. O nosso amigo sentiu isso na pele: com um doutoramento de uma universidade inglesa, demorou dois anos até conseguir emprego na universidade local. São maioritariamente muçulmanos em Sarajevo.

Olhei para o relógio. A conversa estava interessante, mas já íamos atrasados para o comboio de Zagreb. Despedimo-nos e agradecemos a hospitalidade, prometendo voltar a Sarajevo. Quem sabe, um dia…

Sarajevo, Bósnia (Dezembro 2009)

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